Dia 1

Um Conto de Alex Mansour
Todos os Direitos Reservados

Aquilo que te pertence, jamais erra o caminho para te encontrar”

Buda



O relógio mal marcava 6 horas quando Xxxx abriu os olhos. Apesar de não ter dificuldades para acordar cedo, naquele dia ela despertou mais cedo que o habitual, com uma sensação urgente e inexplicável de que algo estava errado no mundo. O sono durante a noite fora irregular, entrecortado por sonhos inquietantes, cujas imagens disformes iam e vinham de sua memória como nuvens carregadas prestes a desabar.


— Hoje vai ser um daqueles dias — ela pensou. 


Claro, aquele seria um dia especial, um dia especial para a Clara pelo menos, Xxxx sabia que a qualquer momento ela entraria pela porta do quarto, trazendo um presente, um pedaço de bolo e um largo sorriso no rosto, então era melhor continuar na cama e não estragar a felicidade da filha. Mas ela própria não estava feliz. Deveria estar, mas não estava. Quer dizer, ela também não estava triste. Com o passar dos anos, aniversários deixaram de ser um dia especial e passaram a ser apenas… dias. Talvez por cansaço, talvez porque a vida parecesse ter transformado celebrações em meras formalidades. Ela virou de lado na cama, apoiada sobre o ombro esquerdo, o que teima em doer depois de anos carregando o peso de uma bolsa que parece amar estar junta daquele ombro, olhou para o seu reflexo no espelho e viu que a mistura de luzes e sombras que enchiam o quarto deixava evidente as marcas do tempo na pele de seu rosto.

— Pois é Xxxx, mais um ano, mais uma ruga para a coleção! — ela disse mentalmente para si mesma, sorrindo, achando graça da própria piada.

Talvez fosse hora de considerar aquele creme caríssimo que Clara vivia falando. Ou talvez fosse hora de aceitar que as rugas eram medalhas, não de guerra, mas de resistência. Decidiu trocar de lado, em parte por conta do ombro que doía e em parte por achar que talvez o sol fosse mais gentil do que seu reflexo. Ao virar ela deu de cara com os primeiros raios do sol que havia nascido a poucos minutos, teve que se reposicionar no travesseiro para desviar do mais forte deles, ela ama ver a luz entrando por entre as cortinas da sua bay window. Aquela não era bem a janela que ela imaginava quando era criança, a vista dava para a criação de vacas leiteiras do seu vizinho, se ao menos fosse a plantação de trigo que existia na colina do lado oposto da casa, e havia sempre aquele padrão retangular e monótono que as grades de ferro projetavam sobre os vidros, desenhando padrões também no chão, como se fizesse questão de ser vista. Xxxx sempre achou que a janela seria linda sem a barreira de ferro. Mas agora, depois de tantos anos, ela já não tinha certeza se era a vista que precisava mudar, ou se era ela. Ouviu passos no corredor, olhou para o velho relógio de madeira escura na parede e se espantou ao notar que já marcava 7:42. A mola da maçaneta da sua porta deu um suave rangido e ela achou melhor fechar os olhos e simular que ainda dormia, assim seria mais divertido. 

Clara abre a porta com cuidado e avança com passos delicados em direção à cama.

— Bom dia, flor do dia! — Clara quase cantou, enquanto equilibrava a bandeja com a perícia de alguém que já sabia o ritual de cor. — levanta, mãe! Hoje o dia é só seu, e eu não vou deixar você passar a manhã na cama! Vamos!


Pousou a bandeja sobre o recamier e foi terminar de abrir as cortinas, abrindo-as por completo em um único movimento dos braços. Para Xxxx, parecia um golpe direto nos olhos; para Clara, era apenas o começo de mais um dia cheio de promessas. Clara irradiava felicidade como um raio de sol teimoso, insistindo em iluminar até os cantos mais escuros. Xxxx sorriu para Clara, um sorriso que talvez não alcançasse os olhos, mas que, pelo menos, tentava. A alegria da filha era um lembrete de tudo o que havia de bom na vida, mas também de tudo o que parecia fora de alcance para ela. Clara pegou novamente a bandeja e andou até o lado de sua mãe.

— Preparei esse café especial pra você começar bem o seu dia, espero que goste.

Xxxx se ajeitou na cama, deslizando um pouco para cima até apoiar as costas na cabeceira enquanto ajustava o travesseiro para sustentar melhor a lombar.

Clara, sem dizer nada, acenou com a cabeça e empurrou a bandeja na direção da mãe. Sobre ela, um mini Royal Breakfast improvisado: cereais, torradas com geleia e manteiga, uma fatia de bolo de laranja e uma xícara de Earl Grey, cuja fragrância já perfumava o ambiente. Além disso, havia uma curiosa miniatura de uma professora idosa, de cabelos brancos e expressão severa, segurando um dedo em riste como se estivesse repreendendo algum aluno.

Xxxx não conteve o riso ao notar o presente inusitado.

— Capaz! Então é assim que você me vê, é? — comentou, alternando o olhar entre a filha e a miniatura, em um misto de diversão e leve repreensão.

Clara sorriu com um ar divertido e respondeu. 

— Eu, não! Mas pode ter certeza de que é assim que seus alunos te veem.

Xxxx soltou uma risada suave, balançando a cabeça em um gesto que combinava resignação e carinho.

— E o bolo de aniversário? Não tem? — perguntou, arqueando as sobrancelhas com uma ponta de expectativa.

— Olha só! Recebe o café na cama e ainda faz exigências! — Clara responde com uma amálgama de leveza e sarcasmo que só ela sabe fazer. — tem bolo de aniversário sim, mas vai ficar pra mais tarde, vai ser a sobremesa do nosso jantar. 


Xxxx sorveu um gole do chá, apreciando a sensação quente que parecia, pelo menos por um momento, espantar o cansaço da noite mal dormida. Enquanto colocava a xícara de volta na bandeja, Clara já estava a caminho do guarda-roupas, determinada como sempre.


— Vamos escolher o que você vai vestir! — Clara anunciou, abrindo as portas com a empolgação de quem estava prestes a renovar um desfile de moda. 


— Escolher o que EU vou vestir? Capaz! Eu nem terminei o café da manhã ainda — Xxxx levantou uma sobrancelha, mas havia um leve sorriso brincando em seus lábios. 


— Café da manhã na cama não é desculpa pra não se arrumar. Hoje você vai brilhar! — Clara já passava os dedos pelos cabides, avaliando rapidamente cada peça. 


Xxxx observava, divertida, enquanto Clara rejeitava vestidos, blusas e camisetas com a intensidade de quem buscava uma obra-prima. 


— Você vai para o laboratório hoje? — Clara perguntou, sem desviar os olhos das roupas. 


— A reunião com os pesquisadores que eu tinha pela manhã foi cancelada, mas tenho que dar aula à tarde — Xxxx tomou mais um gole do chá. 


— Hum. Então não pode ser nada muito claro, sei muito bem como são as suas aulas, vai acabar sujando a roupa toda de terra, né! — Clara riu enquanto puxava um vestido azul claro com delicados bordados florais. — Acho que também não pode ser nada muito chique. Esse está perfeito, é a sua cara. — disse Clara com aquela mesma amálgama na voz. 


— Eu não vou tocar em solo nenhum hoje, isso é com os alunos, mas vem cá… “Minha cara?” Não sei se é um elogio ou uma provocação. — brincou Xxxx


— Vai por mim, mãe. Sou uma especialista nisso. Agora… onde estão seus brincos? Aqueles de filigranas. 


— Estão na prateleira de cima, sobre a caixa de lembranças. Mas cuidado, hein, não quero que você derrube nada. 


Clara olhou para o alto, avistando a pequena caixa de madeira forrada com tecido, com um ar quase intrigado. Ela esticou o braço, ficando na ponta dos pés, enquanto equilibrava o corpo. 


— Ah, claro, a famosa caixa que você nunca deixou eu mexer! — Clara comentou com um sorriso travesso enquanto puxava a caixa com cuidado. 


— Sim, exatamente. Só não tenho certeza se você escutou o que eu disse. — brincou Xxxx, semicerrando os olhos com leveza. 


— Claro que eu escutei, nunca mexi nessa coisa! — Clara respondeu, retirando a caixinha preta de jóias de cima da de lembranças e devolvendo a segunda ao seu lugar, mas com o tom divertido de quem estava disposta a provocar. — Só não entendo o drama por causa de alguns papéis velhos e uma fita cassete. Nada disso vai quebrar se cair no tapete. 


— Não vai ser hoje que a gente vai descobrir. — Xxxx respondeu, o tom ligeiramente mais sério, mas com uma ponta de diversão no olhar. Clara apenas riu, abrindo a caixinha de jóias com um clique suave. 


Clara se aproxima da mãe, ajeita os brincos em suas mãos e os estende com cuidado. 


— Pronto, você já acordou linda. Só falta vestir isso — disse, apontando para o vestido azul. — Mas agora preciso correr, estou atrasada para a faculdade. 


Clara inclinou-se, beijando a testa da mãe. — Feliz aniversário mãe. Aproveite o seu dia, tá? E não se esqueça, as 18 horas eu vou lá te pegar pro dia finalmente começar! 


Clara virou-se em um movimento rápido e, antes que Xxxx pudesse responder, já estava saindo do quarto, deixando atrás de si apenas o leve som de seus passos apressados no corredor. 


Xxxx suspirou, pegou a xícara com as duas mãos e sorveu o restante do chá. A bandeja repousava em seu colo, ainda quase intacta, mas agora parecia um pouco mais pesada. Finalmente, Xxxx afastou a bandeja para o lado e espreguiçou-se, o corpo protestando com um leve desconforto no ombro. Levantou-se, com a preguiça de quem encara um dia longo demais pela frente, e carregou a bandeja até a cozinha.

Na mesa, um bolo de aniversário simples, decorado com confeitos coloridos e uma única vela solitária, chamava atenção. Xxxx parou por um momento, observando-o. Sorriu de canto. Clara realmente se dedicava a esses gestos, e isso sempre a tocava. — Clara deve ter levantado muito cedo para fazer tudo isso. Como faz todos os anos — pensou. 

Colocou a louça no lava-louças, passou um pano na bandeja e a devolveu ao armário. Quando terminou, abriu a geladeira de porta dupla e ficou apenas olhando seu interior, como se buscasse algo que sabia que não iria encontrar ali. Depois, ficou parada no meio da cozinha, os olhos vagando pelo ambiente, como se procurassem algo que não sabia ao certo o que era. Encostou-se na bancada, entre a pia e a geladeira, e olhou para sua sala através da meia divisória. O silêncio da casa não era apenas quieto; era denso, quase palpável, como se carregasse consigo tudo o que ela preferia não pensar.

A luz da manhã filtrava-se pela janela, mas não tinha o brilho caloroso de outros dias. Parecia cansada, como se até o sol hesitasse em entrar. 

Decidiu voltar para a sala e sentar-se em frente à televisão, afinal era seu aniversário, ela merecia esse momento Dolce far Niente. Colocou um outro sachê de Earl Grey, em uma nova caneca com água quente, pegou o controle remoto e começou a zapear pelos ícones dos canais de streaming. 

Um filme após o outro passava pela tela, mas nenhum parecia digno de atenção. Até que algo familiar apareceu na lista de Assistir Novamente. “Um Lugar Chamado Notting Hill “. Xxxx sorriu de leve, quase sem perceber. Era como se sua mão se movesse sozinha ao pressionar o botão do play. As primeiras notas da trilha sonora encheram a sala, e por um instante, ela sentiu um calor suave no peito. Esse filme tinha um jeito único de fazê-la sentir que o mundo ainda guardava alguma magia.

Xxxx desligou a televisão assim que os créditos começaram a rolar. E lá estavam elas de novo, as lágrimas, as anteriores ainda estavam secando devagar, enquanto novas começavam a brotar no canto dos olhos. Por que, depois de tantas vezes, aquele filme ainda tinha o poder de abrir um espaço dentro dela que ela pensava ter fechado? Talvez fosse o sorriso tímido do personagem principal, ou a ideia de que o mundo poderia ser simples, de que de alguma forma as coisas dariam certo no final, se ao menos a gente quisesse acreditar. 

Ela se levantou lentamente, recolhendo a caneca vazia que tinha ficado ao lado do sofá. Olhou pela janela da sala. O céu estava limpo, mas havia algo na luz do dia que parecia opaco, como uma fotografia antiga desbotada pelo tempo. — “Não posso ficar assim o dia inteiro.” — O pensamento veio como uma ordem, algo que ela dizia para si mesma quando precisava ignorar as sombras que às vezes pareciam segui-la. 

De volta ao quarto, o vestido azul estava perfeitamente estendido com cuidado sobre a cama. Ele parecia quase zombar de Xxxx, murmurando: — Vista-me. Finja que ainda se importa — Ela suspirou, afastando-o com um gesto rápido, como se quisesse afastar também a sombra de quem ela costumava ser. Pegou sua calça jeans mais confortável, mas escolheu sua melhor blusa, era um toque de capricho que a fazia sentir que não estava completamente rendida a aquele dia especial e ao mesmo tempo estranho. Depois de prender o cabelo em um coque rápido, ela colocou o estojo dos brincos, que sequer chegou a abrir, novamente sobre a antiga caixa de lembranças, pegou sua bolsa e as chaves do carro em um gesto automático, então lembrou que a Clara iria encontrar com ela ao fim da tarde, achou melhor pegar o celular e abrir o aplicativo para chamar um Uber.

Enquanto atravessava o corredor, seus olhos voltaram à cozinha, onde o bolo permanecia na mesa, esperando pela noite como um segredo compartilhado entre mãe e filha. Com um gesto quase automático, ela o guardou no forno, protegendo-o das moscas e, talvez, de si mesma. — Capaz! Pelo menos, alguma coisa boa ainda existia nos dias comuns — pensou — Comum? Não, hoje é meu aniversário, tente se animar! — deixando o sorriso pousar em seu rosto, rapidamente interrompido pelo som do celular, seu Uber havia chegado.

O som do motor ecoava suavemente no interior do Uber enquanto Xxxx percorria a estrada rural que conectava sua casa ao seu trabalho. A paisagem passava como um borrão familiar: o campo, as vacas, o céu infinito. Mas hoje, o familiar parecia deslocado. Cada curva da estrada parecia mais longa do que de costume, como se o caminho soubesse que ela precisava de tempo para organizar os próprios pensamentos. No rádio, o cantor Leoni tocava a sua versão de Dublê de Corpo. Xxxx deixou escapar um breve sorriso ao perceber a estranha ironia da letra daquela música “♫…Eu não reconheço mais, olhando as fotos do passado, o habitante do meu corpo, esse estranho dublê de retratos…♫”. 

Xxxx sempre achou curioso como as músicas parecem carregar recados ocultos, como se alguém estivesse tentando se comunicar diretamente com ela através das músicas. Olhou para o céu e sentiu algo que não conseguia explicar. Não era tristeza, nem alegria, mas algo entre as duas coisas, um aperto no peito que não machucava, mas também não confortava.

— Chegamos! — exclamou o motorista do Uber.

— Não é aqui, ainda estamos a duas quadras de distância — disse Xxxx com um tom impaciente na voz.

— Esse foi o destino que a senhora colocou no aplicativo — retrucou o motorista, com um tom de quem não tinha tempo para tolices. 

Xxxx suspirou, reconhecendo que discutir seria inútil. Alguns dias pareciam decididos a testar sua paciência. 

— Ok, eu vou a pé o resto do caminho. — desembarcou em frente a um posto de gasolina e olhou para o caminho que precisaria andar até a faculdade comunitária — De carro essa subida nunca me pareceu tão íngreme — disse mentalmente Xxxx, desanimada ao observar que subir aqueles dois quarteirões não seria tão fácil assim — Eu deveria ter me arriscado com o Uber — Ao menos ela estava de tênis, a calçada era composta por um mosaico de pequenos tijolos organizados em um padrão geométrico, subir por aquela calçada de salto teria sido um inferno. 

— Ufa, cheguei! — Exclamou Xxxx ao chegar na entrada de pedestre junto ao ponto de ônibus. Quando se deu conta que aquela era apenas a entrada da faculdade, faltava percorrer a quilométrica distância até a sala de aulas, tudo naquele dia parecia estar mais difícil, longo e arrastado. — Nada é tão ruim que não possa piorar — pensou, com um sorriso amargo que não chegou a se formar.

Já no laboratório de sua aula e com a maioria dos alunos presentes, achou que seria bom já começar as instruções.

— Muito bem, pessoal, comecem a análise morfológica das amostras. — disse Xxxx, caminhando pelo corredor entre as bancadas. — Primeiro, ajustem o foco da lupa para observar a composição superficial. Procurem por fragmentos de minerais como quartzo ou mica, partículas orgânicas, ou sinais de alteração química, como manchas de óxidos de ferro. Anotem tudo no caderno de campo. — Instruiu Xxxx, fez uma pequena pausa ao lado de uma dupla. — Lembrem-se, a coloração do solo conta muito sobre sua composição. Se estiverem em dúvida, comparem com a tabela Munsell para estimar a cor exata. E observem a textura. Areia grossa, por exemplo, será mais evidente por suas bordas angulosas, enquanto partículas de argila podem parecer aglomeradas ou esféricas.
Os alunos começaram a trabalhar, ajustando lupas e registrando suas observações. O som de lápis riscava os cadernos, intercalado por murmúrios de discussões técnicas. Xxxx continuou. — Não se esqueçam de procurar padrões. A forma como os grãos se distribuem ou como materiais orgânicos se acumulam pode indicar a história geológica ou biológica daquela amostra. — Ela ajustou a posição de uma amostra sob a lente de um aluno e completou — Por exemplo, grãos arredondados indicam transporte por água ou vento. Se as bordas forem mais angulosas, o material está mais próximo da origem. 

As mãos levantadas logo começaram a baixar, os alunos mergulhados no trabalho. Os sussurros de conversas técnicas enchiam a sala, misturados ao som leve de anotações em cadernos. Xxxx passou entre as mesas, corrigindo a postura de um aqui, ajustando a lupa de outro ali, mantendo a compostura de quem conhecia cada detalhe do que estava ensinando… Mas a sensação voltou. Era como um nó que começava no estômago e subia pelo peito, algo indefinido, uma tensão invisível que parecia vibrar no fundo de sua mente.
Xxxx parou por um instante ao lado de uma das duplas e se deu conta de que estava segurando o ar sem perceber. — Concentre-se — pensou. Ela ajustou a lupa de um dos alunos e murmurou. — Boa observação, Larissa, mas tente encontrar um padrão nos grãos. Eles contam uma história, lembra? — A sensação, porém, não a abandonava. Parecia mais forte, como se o ar da sala estivesse carregado de algo que ninguém além dela podia sentir.
Xxxx olhou para o relógio na parede, os ponteiros estavam na posição 5:19, embora parecesse que cada movimento do ponteiro dos segundos estava lento demais. Ela tentou ignorar, mas sabia que era impossível. Algo estava errado. E, seja lá o que fosse, estava ficando mais próximo.

Foi quando aconteceu. A tensão silenciosa no peito de Xxxx se intensificou até se transformar em um soco invisível, roubando-lhe o ar. Seus joelhos fraquejaram. Ela se segurou na borda da bancada, sentindo um forte calor subir pelo peito como um raio atravessando seu corpo enquanto a sala ao redor parecia girar levemente. Era como se o mundo ao seu redor tivesse se dissolvido por um instante, deixando apenas uma dor lancinante e um chamado desesperado. Um zumbido alto invadiu seus ouvidos e, no vazio criado por esse ruído, a imagem dele, aquele homem do seu passado, invadiu sua mente. Foi tão vívida que ela quase sentiu o calor da presença dele, o som da voz que não ouvia há anos. Os olhos dela permaneceram fechados, mas as memórias se abriram como uma avalanche. Os alunos pararam imediatamente. Um deles, sentado mais próximo, levantou-se.

— Professora, você está bem?

Xxxx tentou falar, mas sua boca parecia seca, como se todo o ar tivesse sido sugado da sala. Ela respirou fundo, tentando estabilizar o tremor em suas mãos.

— Sim… sim, estou bem, — Respondeu, embora sua voz soasse mais fraca do que gostaria. 

— Tem certeza? — Perguntou Larissa, dando um passo à frente. — Posso pegar um copo d’água ou chamar alguém? 

Xxxx ergueu a mão, sinalizando que não era necessário. 

— Obrigada, Larissa. Só me deu uma tontura rápida. Continuem com as análises. Quero ver os relatórios completos até o final da aula. — Mas enquanto os alunos hesitavam, relutantes em voltar ao trabalho, Xxxx sentiu outra onda daquela sensação. Menor, mas ainda intensa, como um eco do que acabara de acontecer. Ela se endireitou, alisando o jaleco com as mãos para disfarçar o tremor. 

O mundo parecia ter voltado ao normal, mas algo dentro dela estava profundamente abalado. Era como se uma corda invisível estivesse sendo puxada, conectando-a a um lugar distante, a algo ou alguém que clamava por sua atenção. Os alunos voltaram às lupas, embora ela percebesse os olhares rápidos em sua direção. 

Xxxx respirou fundo e olhou novamente para o relógio. Desta vez, ele parecia avançar rápido demais. Como se o tempo estivesse correndo para alcançar algo inevitável. O som baixo e contínuo das lupas sendo desligadas indicava que a atividade estava chegando ao fim. Xxxx caminhou pelo laboratório, observando os alunos guardarem suas anotações nos cadernos de campo. 

— Não se esqueçam de limpar as lupas antes de cobri-las e organizem as amostras no carrinho de transporte. As lâminas que vocês usaram hoje devem ser descartadas no recipiente de resíduos ao lado da pia, — orientou Xxxx, apontando para o local indicado. Enquanto a turma começava a arrumar o laboratório, um dos alunos levantou a mão.

— Professora, o material das lâminas vai ser analisado na próxima aula ou podemos descartar tudo?

Xxxx suspirou, mas manteve o tom calmo enquanto gesticulava.

— O que for relevante deve ser rotulado e colocado no suporte de amostras. O restante, sim, pode ir para o descarte. E certifiquem-se de que cada amostra no carrinho esteja corretamente identificada, sem exceções.

Ela fez uma pausa e lançou um olhar firme na direção do seu aluno, que já parecia antever o que estava por vir.

— Capaz! Alan… se você errar novamente a acidez do solo, eu juro que te faço recitar, de trás para frente, todos os ácidos e seus respectivos pH enquanto realinha todas as peneiras granulométricas da turma. Está entendido?

O aluno engoliu em seco e respondeu rapidamente: — Sim, professora, entendi! Desculpe, isso não vai mais acontecer!

Um sorriso discreto cruzou o rosto de Xxxx enquanto ela seguia pela sala. Ela sabia exatamente como usar um toque de humor para fixar o aprendizado sem causar constrangimento real.

Na bancada principal, onde os relatórios preliminares começavam a se acumular, Xxxx parou para verificar os documentos. Não demorou muito para notar que algumas fichas estavam incompletas.

— Não adianta me entregar relatórios assim, — comentou em tom de advertência, levantando uma ficha em branco para chamar a atenção da turma. — Quem não preencheu todos os campos, volte e corrija antes de sair. Para mim, relatório incompleto equivale a atividade não realizada.

A sala mergulhou em murmúrios preocupados enquanto alguns alunos voltavam apressados para revisar seus relatórios. Xxxx, satisfeita por ter reforçado a lição, continuou organizando os materiais com a certeza de que sua abordagem, ao mesmo tempo firme e acessível, estava ajudando seus alunos a entenderem a importância de cada detalhe.

A sala começou a esvaziar, os últimos alunos recolhendo mochilas e trocando murmúrios sobre os resultados do experimento. Xxxx aproveitou o silêncio crescente para revisar mentalmente as pendências do dia. Olhou novamente para o relógio, faltavam poucos minutos para o horário de saída. Finalmente, guardou seu jaleco no armário ao lado da porta e apagou as luzes do laboratório. Mas o silêncio que veio depois da última luz apagada não foi como o silêncio comum. Era mais pesado, mais denso. 

A porta se fechou atrás dela com um clique suave, enquanto Xxxx substituia o silêncio do laboratório vazio pelo som dos corredores do mundo acadêmico, o burburinho, o ruído das vozes estudantis. Xxxx caminhou lentamente pelo corredor vazio, cada passo ecoando em sincronia com seus pensamentos.

Parou em frente a uma das grandes janelas que davam para o jardim. A luz do entardecer pintava o ambiente com tons de laranja e dourado, criando um contraste quase cruel com o peso que ela sentia no peito. Lá fora, estudantes passavam apressados, mochilas pendendo dos ombros, sorrisos breves trocados entre conversas animadas. Era um cenário de movimento, de vida. Mas, para Xxxx, parecia um filme silencioso. Algo sobre o brilho do céu e o som abafado do mundo parecia… distante, como se ela estivesse apenas assistindo, e não vivendo. Ela passou as mãos pelos cabelos, prendendo-os em um coque apressado, e fechou os olhos por um instante. Era essa sensação, sempre presente, que a deixava inquieta. Algo parecia estar se movendo dentro dela, crescendo silenciosamente como uma onda que ainda não havia quebrado. Mas agora… agora parecia mais real. 

O momento na sala de aula voltava à sua mente em flashes: o impacto, o calor, a dor súbita que parecia vir de algum lugar além de si mesma. Não era algo que pudesse ser ignorado. Não era uma tontura ou um instante de fraqueza; era como um sussurro vindo de outro mundo, insistente e impossível de ignorar. 

As paredes do corredor, com seus cartazes de eventos estudantis e listas de prazos, pareciam mais altas e fechadas do que de costume. Era como se o espaço estivesse mudando, se estreitando ao redor dela. Ou será que era ela que estava encolhendo, perdendo o espaço dentro de si mesma? Apoiou a mão no batente da janela e tentou encontrar consolo na paisagem familiar. 

Os pequenos jardins ao redor do pavilhão estavam sempre ali, imutáveis em suas simetrias bem cuidadas. Mas mesmo eles pareciam ter perdido algo. Talvez fosse a luz do entardecer, ou talvez fosse ela. Sentiu o leve toque de uma brisa vinda de uma fresta na janela, carregando consigo o cheiro sutil de terra molhada, um lembrete de que a chuva passara há pouco. Por um instante, pensou em como o solo absorvia a chuva, silenciosamente, sem nunca se queixar. Será que ela poderia fazer o mesmo? Absorver tudo aquilo e continuar firme? 

O som de passos no corredor trouxe-a de volta. Um grupo de estudantes passou apressado, rindo, alheios ao peso invisível que Xxxx carregava. Ela se afastou da janela, sentindo que seu rosto traía mais do que queria revelar. — Vai passar — pensou, mas a certeza em sua voz mental estava ausente. 

Enquanto atravessava o último trecho do corredor, rumo ao estacionamento, olhou para as próprias mãos. Não estavam sujas, mas havia nelas a sensação de um trabalho inacabado, como se o dia tivesse pedido algo que ela não soube oferecer. O celular vibrou em sua bolsa, arrancando-a de seus pensamentos. Era Clara. A mensagem, simples e direta como sempre Estou no estacionamento, cadê você! — Por um momento, Xxxx sentiu uma ponta de alívio. Clara, com sua energia inabalável, era a âncora que a mantinha à tona. Fechou os olhos por um instante, inspirou profundamente, e então respondeu com a precisão de quem sabe que a filha esperava uma confirmação — Estou indo.

Clara esperava no carro, tamborilando os dedos no volante ao som da música Kiss Me, de Sixpence None The Richer, uma música que parecia não se encaixar bem naquele final de tarde. Assim que Xxxx abriu a porta e entrou, Clara deu um sorriso acolhedor, mas rapidamente o transformou em uma expressão de preocupação. 

— Tá tudo bem, mãe? Você tá com uma cara meio… sei lá, distante, — disse, observando Xxxx afivelar o cinto de segurança com gestos quase automáticos. 

— Estou bem, Clara. Só um pouco cansada, — respondeu, tentando suavizar a voz enquanto olhava para a filha. Mas Clara já conhecia aquele tom; era o de quem escondia algo. 

— É por causa do trabalho? Ou é só o peso da idade, sabe, essas coisas de aniversário? — Clara brincou, tentando aliviar a tensão. 

Xxxx sorriu de canto, mas não respondeu de imediato. Seus olhos seguiram o movimento das árvores passando pela janela enquanto o carro deixava o estacionamento. 

— O trabalho foi normal, mas… aconteceu uma coisa estranha hoje na aula, — ela começou, hesitante. 

Clara lançou-lhe um olhar rápido, a sobrancelha arqueada. — Estranha como? Algum aluno fez algo bizarro? 

— Não, não foi isso, — Xxxx disse, ajeitando-se no banco. — Foi… comigo. No meio da aula, enquanto os alunos estavam trabalhando, senti uma coisa. Não sei como descrever. Foi como… como se algo me atingisse. Um impacto. Não físico, mas… profundo. Me deixou desnorteada por um instante. 

Clara franziu o cenho, preocupada. — Você sentiu dor? Tontura? Pode ser pressão baixa ou alguma coisa do tipo. Vou marcar uma consulta pra você na próxima semana. 

— Não era físico, — insistiu Xxxx, olhando para as mãos no colo. — Era mais como… um pedido de socorro. Como se alguém ou algo estivesse tentando alcançar… Ela parou, balançando a cabeça. — Esquece. Deve ter sido só cansaço. 

Mas a filha não se deu por satisfeita. 

— Um pedido de socorro? Tá vendo? Você está precisando de férias! — Clara disse, com um tom que oscilava entre brincadeira e seriedade.

Enquanto as palavras pairavam entre elas, o som do rádio preencheu o silêncio momentâneo. Uma voz animada anunciava as notícias do dia. “… moradores relataram um evento curioso, um objeto não identificado foi visto flutuando no céu noturno de uma cidade na Europa. Vídeos estão circulando nas redes sociais, mostrando o fenômeno. E agora, vamos para a previsão do tempo…” 

Clara lançou outro olhar rápido para Xxxx, franzindo a testa com um toque de preocupação.

— Sabe o que tá pedindo socorro mesmo, mãe? Você. Seu ânimo, sua energia… ou talvez o seu senso de moda, porque você ignorou o vestido que eu escolhi pra hoje? Ah… nem precisa responder, já sei que você achou ‘demais’ pra ir jantar fora, nem os brincos você colocou. Mãe, sinceramente, às vezes você deveria deixar esse lado prático de lado e se permitir um pouco, sabe? 

Quando Clara mencionou o vestido, Xxxx mal registrou as palavras. Sua mente voltava sempre ao instante na sala de aula: o calor que atravessou seu peito, como se tivesse sido atingida por uma onda invisível. Podia sentir aquele aperto novamente, ainda que distante. Mas como explicar isso sem parecer louca? Então ela apenas balançou a cabeça levemente, soltando uma risada curta. 

— A vida já é séria o bastante sem você se esforçar para parecer sempre tão… contida, mãe. — A tentativa de brincadeira de Clara veio com um sorriso, mas a preocupação em sua voz era difícil de esconder. — Quando foi a última vez que você realmente parou pra cuidar de si mesma? Não só trabalho e casa, mas… você? 

Xxxx não respondeu. Sua mente teimava em voltar, repetidas vezes, ao momento na sala de aula, ao impacto, ao calor repentino. Ela sentiu um arrepio subir pela espinha, mas tentou disfarçar. 

— Tá tudo bem, mãe? — Clara perguntou novamente, percebendo o silêncio prolongado. 

— Sim, tudo bem — disse Xxxx, mas sua voz soava distante, como se estivesse falando mais consigo mesma do que com Clara. 

O carro entrou no estacionamento do shopping, Clara parou o carro na vaga e desligou o motor. Antes de sair, ela tocou suavemente no braço da mãe. 

— Seja lá o que for, mãe, você pode me contar. Sempre — Clara abriu sua bolsa, remexendo com pressa até puxar um pequeno estojo de veludo — Aqui, mãe. Usa esses brincos. Sempre guardo um par para emergências, e você, sem dúvida, está precisando — Clara sorriu, entregando o estojo com a mesma naturalidade de quem dá um abraço silencioso

Xxxx, olhou para os brincos, o brilho discreto refletindo a luz do estacionamento, em seguida seus olhos finalmente encontrando os da filha. Por um momento, ela quis dizer mais, explicar mais, mas só conseguiu sorrir e murmurar: 

— Eu sei, querida. Eu sei.

O ar condicionado do shopping era um alívio após o calor abafado do estacionamento. Clara e Xxxx caminhavam lado a lado, o som das conversas e das risadas ecoando pelo espaço amplo, intercalado pelo estalar de sapatos sobre o piso polido. Clara, como de costume, parecia cheia de energia, enquanto Xxxx absorvia o ambiente, permitindo-se uma pequena pausa para respirar. Claro que aquela aula havia exigido seu esforço extra, mas Xxxx sentia um cansaço maior que o habitual — Deve ser consequência da noite mal dormida — pensou. 

— Tá com fome, mãe? Porque eu tô pronta pra devorar uma costelinha inteira, — Clara disse com um sorriso travesso enquanto ajeitava a bolsa no ombro.

— Fome eu não sei, mas acho que merecemos um jantar decente. Especialmente depois de hoje. — Respondeu Xxxx, sua voz carregando uma suavidade que misturava cansaço e afeto.

Assim que entraram no Outback, o cheiro inconfundível de temperos e carnes grelhadas as envolveu. Clara se adiantou até a hostess, que as cumprimentou com o entusiasmo típico do lugar. — Mesa para duas? Se não se importarem, a espera é de cinco a dez minutinhos — Clara olhou para a mãe em busca de um consentimento. Xxxx assentiu, deixando Clara liderar o caminho até a área de espera. 

Elas não precisaram esperar muito antes de serem conduzidas à mesa. O ambiente, com luzes baixas e uma trilha sonora que mesclava clássicos do rock e pop suave, tinha um charme aconchegante. Assim que se sentaram, Clara já sabia o que pedir.

— Vamos direto ao pão australiano e à batata com bacon. Nada de pensar muito, hoje é seu aniversário, dia de chutar o balde! — Ela decretou, levantando a mão para sinalizar o garçom.

— Direto e eficaz — Disse Xxxx, com um leve sorriso.

Depois de entregarem o pedido inicial, Clara começou a falar sobre sua aula mais recente. 

— Hoje tivemos uma discussão acalorada sobre marketing viral. Você acredita que uma campanha bem feita nas redes pode alcançar milhões de pessoas com praticamente zero investimento? Quer dizer, é claro que você precisa de criatividade e… bem, de uma boa dose de sorte. 

A empolgação de Clara tornava qualquer assunto fascinante, até mesmo as Redes Sociais, que sempre causaram uma certa rejeição de Xxxx, então apoiou o cotovelo na mesa e o queixo na mão, observando a animação da filha. — Só isso!? Zero investimento e milhões de alcance.  Capaz! Parece quase mágico. — Disse Xxxx tentando acompanhar com a mesma empolgação.

— Nem tanto. É tudo sobre saber como alavancar tendências, entender o algoritmo e, claro, criar algo que gere engajamento. As pessoas adoram se sentir parte de algo maior, sabe? Uma piada interna, um desafio viral… tudo isso conecta. Ah, e não posso esquecer do poder dos memes. — Clara gesticulava enquanto falava, e Xxxx, embora não entendesse todos os detalhes, apreciava a paixão que sua filha exalava.

Enquanto Clara explicava termos como SEO, Growth Hacking e CTR, o garçom voltou com o pão australiano e a batata coberta de queijo e bacon, acompanhados de uma generosa porção de molho ranch. Clara não perdeu tempo, cortando um pedaço do pão e passando aquela deliciosa manteiga batida com mel, enquanto ainda estava quente.

— Isso aqui é praticamente uma terapia, — disse Clara, com a boca cheia, arrancando um riso de Xxxx.

— Pelo menos não precisamos de muito marketing pra vir aqui, — respondeu Xxxx, pegando um pedaço do pão.

— Isso é o que você pensa — continuou Clara com sua palestra de Marketing — Apesar da comida do Outback ser deliciosa e convidativa, só no ano passado o Outback investiu 250 milhões em publicidade no Brasil, tudo isso pra causar esse impulso quase irresistível para virmos aqui e abusar desse pornfood maravilhoso!

Esse comentário arrancou uma gargalhada genuína de Xxxx e ela pensou no enorme privilégio de ter uma filha como a Clara.

O tempo passou em conversas descontraídas, até que o tema da sensação que Xxxx experimentara mais cedo voltou à tona. Clara, dessa vez, insistiu com mais firmeza. 

— Você precisa mesmo marcar um médico. Essa história de sentir impacto ou o que quer que seja não é normal, mãe.

— Clara, não era físico. Eu já disse. Foi algo… diferente, — disse Xxxx, desviando o olhar para o copo de chá gelado que tinha acabado de chegar.

— E desde quando diferente é desculpa pra não cuidar da saúde? Você sempre me diz que prevenir é melhor do que remediar. Olha só quem está ignorando os próprios conselhos.

Antes que Xxxx pudesse responder, o garçom voltou para anotar o pedido principal. Clara, animada, apontou no cardápio. 

— Cebola blooming e ribs on the barbie, por favor. Ah, e uma cerveja zero pra mim. Minha mãe vai querer continuar com o chá gelado da casa, certo mãe?

— Claro, afinal alguém tem que dirigir, apesar de toda essa sua tecnologia, o seu carro ainda não volta pra casa sozinho. 

— Ainda não mãe, mas não vai demorar muito — As duas riram da piada e o garçom simulou com perfeição uma risada genuína, como aprendeu no seu manual de treinamento. 

Assim que o garçom se afastou, Clara mudou de assunto, mas não sem antes deixar um último comentário. 

— Pelo menos promete que vai pensar nisso. Por mim, tá bom?

Xxxx suspirou e concordou com um leve aceno — Por você? Prometo que penso.

O ambiente ao redor era agradável, mas Xxxx não podia evitar de sentir algo persistente em sua mente, uma espécie de eco da sensação de mais cedo. Ela tentava disfarçar, mergulhando na conversa com Clara, mas algo dentro dela parecia estar se movendo. Como uma onda que ainda não tinha quebrado.

Quando a comida chegou, a mesa ganhou vida. A cebola blooming, dourada e crocante, exalava um aroma que preenchia o espaço, enquanto a costela com seu molho barbecue brilhava sob as luzes suaves do restaurante. Clara não perdeu tempo e puxou um pedaço da cebola, mergulhando-o no molho com precisão.

— Isso aqui é arte. E eu sou uma apreciadora — disse ela com um sorriso, enquanto saboreava o primeiro pedaço.

Xxxx serviu-se de um pedaço menor, mais contida.

— Sabe Clara, eu admiro como você aproveita cada momento. Eu não consigo mais fazer isso. Parece que a vida virou… um esforço constante.

— Talvez porque você esteja tentando demais, mãe — Clara respondeu, enquanto pegava mais um pedaço da cebola — Você tem que parar de pensar tanto. Relaxar. Aproveitar os momentos simples, como este. Afinal, não é todo dia que a gente tem essa cebola maravilhosa, né?

Xxxx riu baixinho e levantou o copo de chá gelado — Um brinde à cebola então. E às suas filosofias de vida.

Clara ergueu sua cerveja com um sorriso, batendo de leve no copo da mãe — À cebola. E ao marketing viral, que sempre dá um jeito de se infiltrar em qualquer conversa.

Xxxx balançou a cabeça, rindo, e voltou sua atenção para a costelinha. Os sabores doces e defumados do molho pareciam um abraço caloroso, mas não conseguiam espantar a sensação que ainda rondava sua mente. Por um instante, deixou o garfo descansar no prato e olhou ao redor do restaurante. As conversas e risadas pareciam distantes, como se ela estivesse vendo tudo de fora. Foi Clara quem quebrou o silêncio. 

— Falando em filosofias de vida… você já pensou em sair, conhecer alguém? Não precisa ser nada sério, só… se abrir para a possibilidade.

Xxxx franziu o cenho — De onde veio isso, Clara?

— Ah, mãe, faz tanto tempo que você tá sozinha. Não acha que merece um pouco de… você sabe… felicidade?

As palavras de Clara trouxeram de volta, como um eco inevitável, o rosto que havia invadido sua mente durante o evento na aula. Xxxx sabia exatamente quem ele era, alguém que a marcou profundamente no passado. Ela havia tentado seguir em frente, convencendo-se de que algumas memórias deveriam permanecer onde estavam: no passado. Mas, bastava uma pergunta, uma sugestão como aquela, para que ele voltasse. Não com a dor de uma ferida aberta, mas com a nitidez de um sonho persistente, impossível de apagar. Mesmo assim, Xxxx respondeu à primeira coisa que lhe veio à mente, desviando do que sentia.

— Eu já tenho você, Clara. E isso me basta — respondeu, mas havia algo na voz de Xxxx que soava mais como uma desculpa do que uma certeza.

Clara não insistiu, mas seu olhar dizia que o assunto estava longe de ser encerrado. Elas voltaram a comer em silêncio por um tempo, até que um burburinho começou a se espalhar pelo restaurante. As vozes ao redor ficaram mais altas, e Xxxx notou que várias pessoas estavam se levantando e olhando em direção a uma das TVs penduradas na parede, onde passava um plantão de notícias.

— O que tá acontecendo? — Clara perguntou, virando-se para o garçom que passava com uma bandeja cheia.

— Ah, parece que tem um cara… voando. Tipo, voando mesmo. Tá todo mundo falando disso.

— Clara arregalou os olhos e olhou para a mãe, um sorriso cético se formando — Tá vendo, mãe? Marketing viral! Aposto que daqui a pouco aparece o logo da Red Bull dizendo que te dá asas.

Xxxx sorriu, mas havia algo nos olhos dela que refletia outra coisa. Não era ceticismo, nem humor. Ela sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo quando o garçom falou da notícia na tv. Enquanto Clara devorava a cebola e seu pedaço de costela, Xxxx ficou imóvel, olhando para a TV distante. A transmissão mostrava holofotes mirando uma figura indistinta em um céu escuro, flutuando sobre uma cidade que, com o zoom distante, parecia ser portuária. Ela sentiu um aperto no peito, como se algo dentro dela estivesse tentando sair. A onda invisível, que antes parecia distante, agora batia com força contra ela. Mas Xxxx manteve o sorriso, disfarçando o turbilhão interno. 

— Talvez seja mesmo marketing —  disse, tentando soar leve — Ou um truque de vídeo.

— Com certeza — Clara respondeu, ainda rindo. — A gente vive na era dos efeitos especiais, né? É só chamar o Spielberg. Deve ter motores de drone ou um cabo de aço por trás desse truque. 

O garçom voltou com a sobremesa inesperada: o bolo feito por Clara. O mesmo que Xxxx havia guardado no forno mais cedo, decorado com confeitos coloridos e uma vela acesa no topo. Ele foi acompanhado por uma animação típica do restaurante, com todos os atendentes cantando parabéns em voz alta e batendo palmas. Clara sorria como uma criança travessa, e Xxxx, surpresa, não conseguiu evitar uma risada 

— Você realmente planejou tudo, hein?! — disse Xxxx, com um tom misto de surpresa e diversão — Quando você disse que o bolo seria a sobremesa do jantar, eu não imaginei que estava se referindo a isso, aqui, no restaurante!

— Ah, mãe! — Clara respondeu, piscando com diversão. — Essa é a minha habilidade especial: transmitir exatamente a mensagem necessária, mas de um jeito que a deixa escondida entre as entrelinhas. Não é todo mundo que domina essa arte, viu?

Enquanto o restaurante inteiro participava da celebração, batendo palmas e incentivando-a a apagar a vela, Xxxx percebeu algo. Não era só o bolo, ou o jantar, ou os pequenos gestos de Clara. Era o que tudo isso simbolizava: um esforço constante para mantê-las unidas, para lembrar que, mesmo em meio ao caos e às incertezas, havia algo sólido entre elas.

Xxxx apagou a vela, com o som das palmas e dos sorrisos ao fundo. Ela olhou para Clara, que a observava com aquele olhar que misturava amor, teimosia e uma determinação inabalável. Por um momento, Xxxx sentiu o peso no peito aliviar, ainda que só um pouco.

Depois de pedir para embalar o que sobrara da comida, elas deixaram o restaurante e caminharam de volta ao carro. Apesar do dia quente e úmido a noite estava fria, e Xxxx se encolheu abraçando o seu próprio corpo enquanto olhava para o céu. As estrelas pareciam mais distantes do que nunca. Clara se aproximou e abraçou a mãe para ajudar a espantar o frio.

— Tá pronta pra dirigir, mãe? Porque eu tomei minhas cervejas e tô ótima para julgar sua habilidade no volante — Clara brincou, entregando as chaves nas mãos da mãe.

— Pronta — respondeu Xxxx, pegando as chaves. Mas enquanto ligava o carro, o murmúrio do restaurante e a figura voando ainda estavam gravados em sua mente, como uma música que se recusa a terminar.

E assim, elas voltaram para casa, o som baixo da música que Clara colocou para tocar no bluetooth, alheias ao mundo fora daquele carro, o silêncio confortável entre mãe e filha, mas Xxxx sabia que algo estava prestes a mudar. Ela só não sabia o quê. Ainda não.

No instante em que Xxxx transformava mentes, em outro fuso horário o destino transformava vidas

Sob o céu noturno, a ponte icônica que cruzava 45 metros acima do imponente Rio Douro parecia envolta em um brilho peculiar, reflexo das luzes da cidade e de uma lua que brilhava imponente acima do horizonte. Sua estrutura metálica, marcada por arcos vazados e elegantes que pareciam tocar o céu, era testemunha de histórias e destinos cruzados há mais de um século. 

Ao longo do trajeto, uma fileira de postes baixos, com luzes suaves e acolhedoras, ladeava os trilhos do metrô, criando uma atmosfera quase mágica. Essas pequenas luminárias parecem guiar os passos de pedestres e o percurso dos vagões, enquanto lançam sombras delicadas sobre o piso texturizado de metal. Do alto, a vista era deslumbrante: o rio serpenteava preguiçosamente, ladeado por edifícios históricos de tons quentes, cujas fachadas refletiam o charme secular daquela cidade vibrante.

Mesmo no inverno, a ponte raramente ficava vazia. Turistas, em busca da foto perfeita, aglomeravam-se sobre ela desde a alvorada até o crepúsculo, e às vezes um pouco além. Aproveitavam cada instante de luz disponível para registrar momentos. Mas agora, com o frio da noite, a multidão habitual havia se dissipado, sem se darem conta de que, mesmo sem a luz do sol, a cidade permanece irresistivelmente fotogênica à noite. Aquela altura restavam poucos: uma família discutindo suavemente em alemão sobre qual restaurante visitar; um casal de namorados, ela em um vestido longo, ele enrolado em um cachecol, trocando sorrisos cúmplices; uma mulher interrompe a caminhada de um policial que estava por perto e pergunta — Com licença, o senhor pode me informar as horas? — O policial consultou o relógio em seu pulso antes de responder — São vinte menos um quarto, senhora — Vinte menos um quarto? — estranhou a forma como o policial leu às horas —  Ah, tá… são 19:45! Obrigada. — Respondeu ela, virando-se para o homem que a acompanhava. Este, um senhor de aparência tranquila, com os cabelos grisalhos e uma camisa da seleção brasileira sobre outra de manga comprida — Então, são 16:45 no Brasil, vamos voltar para o hotel que ainda dá tempo de ligar para nossos filhos antes deles saírem. Perto do casal havia um homem mais velho, parado sozinho próximo à grade, segurando um guarda-chuva e olhando fixamente para o horizonte com um olhar saudoso, como se buscasse nas águas calmas do Rio Douro algo que ele havia perdido há muito tempo.

Caminhando calmamente desde a extremidade norte da ponte, um homem alto, com cerca de 1.84 metros, de porte atlético, surgiu por detrás de um metrô que mergulhava no túnel, onde o som abafado dos vagões contrastava com a tranquilidade do lado de fora. Ele vestia um moletom vermelho, o capuz puxado para a frente, cobrindo parcialmente o rosto. As mãos estavam enterradas nos bolsos do casaco, e seus passos tinham uma cadência tranquila, como se não pertencesse à pressa do mundo. Usava jeans simples e tênis sem cadarços, reforçando a simplicidade que escondia algo indescritível.

Ao passar pelas pessoas, captava fragmentos de suas conversas:

— ¿Dónde está el hotel? Estoy seguro de que era por aquí. — Resmungava um homem, ajustando a mochila enquanto olhava ansiosamente para o celular.

— Diese Stadt… so schön! Ich werde mich für immer daran erinnern! — Exclamou uma mulher, segurando a mão de uma criança curiosa que apontava para os barcos no rio.

— Ma dai, dobbiamo andare! Non voglio fare tardi. — Murmurou um jovem, apressando a amiga que insistia em tirar mais uma foto.

— لهذا البلد نكهة فريدة حقًا. تذكر أن نعود إلى هنا، — Comentou um homem de barba longa, enquanto seu companheiro assentiu com entusiasmo.

— बच्चों को यह देखना बहुत पसंद आएगा — Disse uma mulher, apontando para a vista.

O homem de moletom vermelho não apenas ouvia; também entendia cada palavra. Não apenas as línguas, mas o subtexto: as preocupações, as emoções, os objetivos simples ou profundos de cada frase. Porém, seu rosto permanecia impassível, oculto pelo capuz, como se não pertencesse àquele mosaico de vozes e vidas.

Ele continuou caminhando até parar no meio da ponte, do lado voltado para a foz do rio. Ali, o Rio Douro parecia fluir para o infinito, encontrando o oceano distante. O homem permaneceu imóvel por longos minutos, observando. O som do rio era uma canção distante, quase um sussurro. Desde a primeira vez que ele contemplara aquela paisagem, ela despertara nele uma melancolia doce, a lembrança de alguém que ele conhecera a muito tempo, uma sensação de nostalgia embalada pela beleza das cores, dos brilhos e das sombras que pareciam contar uma longa história de luta e paz. Mas hoje, tudo isso desaparecera. A melancolia bucólica da saudade dera lugar a um vazio opaco, como se a cidade inteira tivesse perdido suas cores aos seus olhos. Ele voltou sua atenção para a margem esquerda, ao longe. Apurou a audição e ouviu um homem reclamar de seu prato de Bacalhau à Brás que estava sendo servido do outro lado da ribeira; ouviu o capitão do longo barco que começava a subir o rio, dando ordens ao seu imediato; ouviu a orquestra de sopro que começava sua apresentação na distante Casa da Música. Com a concentração certa ele provavelmente poderia ouvir a conversa da maioria das pessoas daquela cidade, se assim desejasse. Sua atenção voltou novamente para o rio e viu que as luzes dos barcos criavam pequenos reflexos que pareciam dançar na superfície da água.

Por um breve momento, ele hesitou. Passara a vida inteira evitando aquele instante, escondido nas sombras, mas agora algo dentro dele havia dado um basta, nada mais importava — Porque não? — pensou — Para que continuar? — Seu maior medo eram as consequências daquilo que ele poderia fazer se perdesse totalmente o controle, e ele temia que talvez estivesse perto demais desse ponto sem retorno e torcia por um milagre, só um milagre poderia salvá-lo agora. Então, de repente, ele deu um pulo suave, subindo em um único movimento ágil e silencioso, ficando de pé sobre a grade de proteção. O choque foi instantâneo. As poucas pessoas ao redor pararam, suas expressões congeladas entre a confusão e o medo. Um grito de pânico ecoou: “Oh mein Gott!” seguido de murmúrios em outras línguas. Um casal segurou as mãos com força, o homem mais velho deixou cair o guarda-chuva. O policial da PSP, que patrulhava a cerca de cinquenta metros, demorou um segundo para processar a cena.

— Ó rapaz, desça já daí! — gritou o policial, começando a correr em máxima velocidade em direção ao homem, a descarga de adrenalina fez seus passos parecerem como que em câmera lenta.

O homem de moletom vermelho não respondeu. Em vez disso, deu um passo adiante, mas, em vez de cair… subiu. Lentamente, desafiando a gravidade, começou a ascender, como se o céu o chamasse. O silêncio que se seguiu foi quase absoluto, quebrado apenas por ofegos e exclamações incrédulas.

— ¡No puede ser! ¿Está volando? — gritou alguém.

— Il est fou… ou un ange? — sussurrou de forma desconexa uma mulher, com a mão no peito.

O policial parou, estático, com o olhar fixo na figura que agora subia em direção ao céu. Ele sacou o rádio, mas as palavras não vinham. O que poderia ele dizer?

O homem continuou a subir, a figura cada vez menor contra o céu escuro. A cerca de quinhentos metros de altura, ele parou. Seu corpo estava relaxado, em uma postura quase casual. A perna direita permanecia esticada para baixo, enquanto a esquerda se dobrava ligeiramente. As mãos continuavam nos bolsos do moletom, os ombros relaxados, sem tensão. A cabeça inclinada levemente para baixo, como se contemplasse a foz do Rio Douro ao longe, e então fechou os olhos.

Ele parecia flutuar entre o tempo e o espaço, uma visão que ninguém sabia como explicar. Para aqueles que assistiam debaixo, ele era um mistério, um homem comum, vestido de forma comum, mas que desafiava todas as leis naturais e que agora nada mais era que uma pequena forma sob aquele céu estrelado.

O homem flutuava como uma sombra contra as estrelas, sua silhueta imóvel desafiando o vento que sussurrava através da ponte. Abaixo, a multidão permanecia congelada, como se o mundo tivesse parado para assistir àquela visão impossível. O Rio Douro continuava a fluir, indiferente ao que acontecia, mas as vidas das pessoas sobre a ponte e de outras a milhares de quilômetros, jamais seriam as mesmas.



No instante em que Xxxx transformava mentes, em outro fuso horário o destino transformava vidas

Sob o céu noturno, a ponte icônica que cruzava 45 metros acima do imponente Rio Douro parecia envolta em um brilho peculiar, reflexo das luzes da cidade e de uma lua que brilhava imponente acima do horizonte. Sua estrutura metálica, marcada por arcos vazados e elegantes que pareciam tocar o céu, era testemunha de histórias e destinos cruzados há mais de um século. 

Ao longo do trajeto, uma fileira de postes baixos, com luzes suaves e acolhedoras, ladeava os trilhos do metrô, criando uma atmosfera quase mágica. Essas pequenas luminárias parecem guiar os passos de pedestres e o percurso dos vagões, enquanto lançam sombras delicadas sobre o piso texturizado de metal. Do alto, a vista era deslumbrante: o rio serpenteava preguiçosamente, ladeado por edifícios históricos de tons quentes, cujas fachadas refletiam o charme secular daquela cidade vibrante.

Mesmo no inverno, a ponte raramente ficava vazia. Turistas, em busca da foto perfeita, aglomeravam-se sobre ela desde a alvorada até o crepúsculo, e às vezes um pouco além. Aproveitavam cada instante de luz disponível para registrar momentos. Mas agora, com o frio da noite, a multidão habitual havia se dissipado, sem se darem conta de que, mesmo sem a luz do sol, a cidade permanece irresistivelmente fotogênica à noite. Aquela altura restavam poucos: uma família discutindo suavemente em alemão sobre qual restaurante visitar; um casal de namorados, ela em um vestido longo, ele enrolado em um cachecol, trocando sorrisos cúmplices; uma mulher interrompe a caminhada de um policial que estava por perto e pergunta — Com licença, o senhor pode me informar as horas? — O policial consultou o relógio em seu pulso antes de responder — São vinte menos um quarto, senhora — Vinte menos um quarto? — estranhou a forma como o policial leu às horas —  Ah, tá… são 19:45! Obrigada. — Respondeu ela, virando-se para o homem que a acompanhava. Este, um senhor de aparência tranquila, com os cabelos grisalhos e uma camisa da seleção brasileira sobre outra de manga comprida — Então, são 16:45 no Brasil, vamos voltar para o hotel que ainda dá tempo de ligar para nossos filhos antes deles saírem. Perto do casal havia um homem mais velho, parado sozinho próximo à grade, segurando um guarda-chuva e olhando fixamente para o horizonte com um olhar saudoso, como se buscasse nas águas calmas do Rio Douro algo que ele havia perdido há muito tempo.

Caminhando calmamente desde a extremidade norte da ponte, um homem alto, com cerca de 1.84 metros, de porte atlético, surgiu por detrás de um metrô que mergulhava no túnel, onde o som abafado dos vagões contrastava com a tranquilidade do lado de fora. Ele vestia um moletom vermelho, o capuz puxado para a frente, cobrindo parcialmente o rosto. As mãos estavam enterradas nos bolsos do casaco, e seus passos tinham uma cadência tranquila, como se não pertencesse à pressa do mundo. Usava jeans simples e tênis sem cadarços, reforçando a simplicidade que escondia algo indescritível.

Ao passar pelas pessoas, captava fragmentos de suas conversas:

— ¿Dónde está el hotel? Estoy seguro de que era por aquí. — Resmungava um homem, ajustando a mochila enquanto olhava ansiosamente para o celular.

— Diese Stadt… so schön! Ich werde mich für immer daran erinnern! — Exclamou uma mulher, segurando a mão de uma criança curiosa que apontava para os barcos no rio.

— Ma dai, dobbiamo andare! Non voglio fare tardi. — Murmurou um jovem, apressando a amiga que insistia em tirar mais uma foto.

— لهذا البلد نكهة فريدة حقًا. تذكر أن نعود إلى هنا، — Comentou um homem de barba longa, enquanto seu companheiro assentiu com entusiasmo.

— बच्चों को यह देखना बहुत पसंद आएगा — Disse uma mulher, apontando para a vista.

O homem de moletom vermelho não apenas ouvia; também entendia cada palavra. Não apenas as línguas, mas o subtexto: as preocupações, as emoções, os objetivos simples ou profundos de cada frase. Porém, seu rosto permanecia impassível, oculto pelo capuz, como se não pertencesse àquele mosaico de vozes e vidas.

Ele continuou caminhando até parar no meio da ponte, do lado voltado para a foz do rio. Ali, o Rio Douro parecia fluir para o infinito, encontrando o oceano distante. O homem permaneceu imóvel por longos minutos, observando. O som do rio era uma canção distante, quase um sussurro. Desde a primeira vez que ele contemplara aquela paisagem, ela despertara nele uma melancolia doce, a lembrança de alguém que ele conhecera a muito tempo, uma sensação de nostalgia embalada pela beleza das cores, dos brilhos e das sombras que pareciam contar uma longa história de luta e paz. Mas hoje, tudo isso desaparecera. A melancolia bucólica da saudade dera lugar a um vazio opaco, como se a cidade inteira tivesse perdido suas cores aos seus olhos. Ele voltou sua atenção para a margem esquerda, ao longe. Apurou a audição e ouviu um homem reclamar de seu prato de Bacalhau à Brás que estava sendo servido do outro lado da ribeira; ouviu o capitão do longo barco que começava a subir o rio, dando ordens ao seu imediato; ouviu a orquestra de sopro que começava sua apresentação na distante Casa da Música. Com a concentração certa ele provavelmente poderia ouvir a conversa da maioria das pessoas daquela cidade, se assim desejasse. Sua atenção voltou novamente para o rio e viu que as luzes dos barcos criavam pequenos reflexos que pareciam dançar na superfície da água.

Por um breve momento, ele hesitou. Passara a vida inteira evitando aquele instante, escondido nas sombras, mas agora algo dentro dele havia dado um basta, nada mais importava — Porque não? — pensou — Para que continuar? — Seu maior medo eram as consequências daquilo que ele poderia fazer se perdesse totalmente o controle, e ele temia que talvez estivesse perto demais desse ponto sem retorno e torcia por um milagre, só um milagre poderia salvá-lo agora. Então, de repente, ele deu um pulo suave, subindo em um único movimento ágil e silencioso, ficando de pé sobre a grade de proteção. O choque foi instantâneo. As poucas pessoas ao redor pararam, suas expressões congeladas entre a confusão e o medo. Um grito de pânico ecoou: “Oh mein Gott!” seguido de murmúrios em outras línguas. Um casal segurou as mãos com força, o homem mais velho deixou cair o guarda-chuva. O policial da PSP, que patrulhava a cerca de cinquenta metros, demorou um segundo para processar a cena.

— Ó rapaz, desça já daí! — gritou o policial, começando a correr em máxima velocidade em direção ao homem, a descarga de adrenalina fez seus passos parecerem como que em câmera lenta.

O homem de moletom vermelho não respondeu. Em vez disso, deu um passo adiante, mas, em vez de cair… subiu. Lentamente, desafiando a gravidade, começou a ascender, como se o céu o chamasse. O silêncio que se seguiu foi quase absoluto, quebrado apenas por ofegos e exclamações incrédulas.

— ¡No puede ser! ¿Está volando? — gritou alguém.

— Il est fou… ou un ange? — sussurrou de forma desconexa uma mulher, com a mão no peito.

O policial parou, estático, com o olhar fixo na figura que agora subia em direção ao céu. Ele sacou o rádio, mas as palavras não vinham. O que poderia ele dizer?

O homem continuou a subir, a figura cada vez menor contra o céu escuro. A cerca de quinhentos metros de altura, ele parou. Seu corpo estava relaxado, em uma postura quase casual. A perna direita permanecia esticada para baixo, enquanto a esquerda se dobrava ligeiramente. As mãos continuavam nos bolsos do moletom, os ombros relaxados, sem tensão. A cabeça inclinada levemente para baixo, como se contemplasse a foz do Rio Douro ao longe, e então fechou os olhos.

Ele parecia flutuar entre o tempo e o espaço, uma visão que ninguém sabia como explicar. Para aqueles que assistiam debaixo, ele era um mistério, um homem comum, vestido de forma comum, mas que desafiava todas as leis naturais e que agora nada mais era que uma pequena forma sob aquele céu estrelado.

O homem flutuava como uma sombra contra as estrelas, sua silhueta imóvel desafiando o vento que sussurrava através da ponte. Abaixo, a multidão permanecia congelada, como se o mundo tivesse parado para assistir àquela visão impossível. O Rio Douro continuava a fluir, indiferente ao que acontecia, mas as vidas das pessoas sobre a ponte e de outras a milhares de quilômetros, jamais seriam as mesmas.



Xxxx

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